Por JOÃO VIEIRA NETO – Advogado criminalista, Conselheiro Seccional da OAB/PE, presidente da CDP-OAB/PE, secretário-geral adjunto da UNACRIM
A Lei Anticorrupção (nº 12.846/2013) foi criada em um momento histórico, quando o Brasil vivia um pujante crescimento econômico, ciceroneando a realização da copa do mundo de futebol, em canteiro de obras do Oiapoque ao Chuí, como implemento punitivo na esfera administrativa, civil e respingo transverso na penal às empresas, com desproporcionalidade sancionadora personalíssima, sob a ótica da responsabilidade objetiva e, ao mesmo tempo, atrelada à efetivação de mecanismos de compliance, transparência e fiscalização de rotinas corporativas.
Noutra linha, a responsabilização não excluiria as suas individualidades, seja por seus dirigentes, administradores de menor participação, gerentes, representantes, colaboradores, sociedades controladoras e coligadas, até mesmo as consorciadas e funcionários, de fato e de direito, poderiam ser penalizados por coautoria sobre o ato ilícito administrativo, em razão de atuação no inter criminis, na medida de sua culpabilidade, na seara penal.
Para tanto, a prevenção seria rotina, principalmente nas práticas individuais de seus funcionários, utilizando-se de rotinas sistemáticas de aparelhamento e conscientização de suas ações, porque “A pessoa jurídica será responsabilizada independentemente da responsabilização individual das pessoas naturais”(art.3º, §1º). Além disto, nas hipóteses sucessórias haveria a obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado, assim, tornando-as ad perpetuam, salvo a impossibilidade de uma sucessão penal por vedação legal, podendo, de maneira reflexa, conduzir ao fechamento da atividade societária.
Ainda, se houvesse a maquiagem de uma fusão ou incorporação, em princípio, as empresas seriam punidas devido à simulação ou evidente intuito de fraudar, quando devidamente “comprovados”.
A norma em comento, por seu artigo 5º, criou um rol de atos lesivos à administração pública nacional ou estrangeira, inobstante ser redundante ao mencionar contra princípios da administração pública e tratados internacionais assumidos, quando comprovadamente ocorrer o ilícito (leia-se administrativo ou penal), por definição de seus Incisos I ao V, extrapolando a legislação específica (Lei 8666/93) e a norma penal para se estabelecer uma remissão repetitiva de crimes, a exemplo da corrupção (CP, arts. 333 e 337-B) a enquadrar no Inciso I, inovando pelo financiador (II) ou a utilização de terceira pessoa física ou jurídica (III) para ocultar, dissimular os interesses reais ou identidade dos beneficiários dos atos praticados.
Poderiam, ainda, ser ventilados os atos subsequentes à adequação da Lei nº 9613/98, com as alterações da Lei nº 12.683/12, em razão do crime de lavagem de dinheiro — atualmente empregado em quase todas as denúncias envolvendo capitais e contra a administração pública —, face ao mascaramento e à reciclagem dos valores e/ou bens reinseridos com aspectos de licitude, por meio de terceira pessoa ou não, ao capital da empresa favorecida ou de outrem, justamente, pela amplitude do crime ou infração antecedente, a fim de ocultar ou dissimular a sua origem advinda de um destes crimes ou infrações penais, indistintamente.
Senão fosse por isto, em detrimento das certames e contratos, com supedâneo no art. 5º, IV, em suas sete alíneas, atrelou-se ações empresariais às figuras do conluio, fraude do certame, afastar, impedir ou fraudar a licitude de qualquer procedimento licitatório, além de impedir, perturbar ou fraudar a realização da licitação pública ou contrato dela decorrente, aqui chega a subempreitada da obra, ou até mesmo se forem criadas empresas figurativas em participação fraudulenta ou irregular, como forma de obter vantagem/benefício indevido para modificar ou prorrogar os contratos celebrados, sendo no início (ato convocatório) ou nos respectivos instrumentos contratuais.
No espaço da não autoincriminação, segundo o art. 5º, LXIII, CF/88, ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo, além do Brasil ser signatário do Pacto de São José da Costa Rica, Convenção Americana dos Direitos Humanos, Pacto Internacional sobre Direito Civis e Políticos, assim, é deveras atípica a conduta, naquele primeiro olhar, de dificultar por omissão a investigação ou fiscalização, pois se mostrava irrazoável, feria, por seu turno, esse princípio inviolável para aplicação de sanções aos coresponsáveis e, frise-se, seria objeto de reclamos aos Superiores Tribunais.
Ainda, o legislador ao reportou-se à adequação e nomenclatura das figuras lesadas estrangeiras como entes da administração pública por seus órgãos e entidades estatais ou representações diplomáticas de país estrangeiro, de maneira ampla, em qualquer nível ou esfera de governo, enquadrando-se as pessoas jurídicas controladas, direta ou indiretamente, por poder público de país pós-fronteira. No contexto, estavam insertas as organizações públicas internacionais e não governamentais, devido à amplitude de norma.
Noutro giro, sendo o agente público estrangeiro, aquele que, mesmo transitoriamente ou sem remuneração, por equiparação ao art. 327, parágrafo primeiro, do Código Penal, exercendo cargo, emprego ou função pública nos entes listados no §1º, V, do art. 5º, da legislação em estudo, como reafirmação dos ditames normativos.
Pior, onde doe mais, no bolso, é certo, estar-se-ia por aplicar sanções administrativas, quando efetivamente regulamentadas, a chegar aos níveis estratosféricos/desproporcionais variando de 0,1% a 20% do faturamento bruto (quase um confisco), repita-se, de tudo que for apurado no último exercício comercial anterior à instauração do processo administrativo, excluídos os tributos – é claro – , não sendo inferior à vantagem auferida e assim podendo haver um saldo remanescente, se possível a sua estimação, e deveria ser publicizada a decisão condenatória a expensas da pessoa jurídica. Assim, denotando uma execração pública, mancha social e, temporariamente, atestando a sua idoneidade.
Tais penas dever-se-iam ser aplicadas fundamentadamente, evitando, assim, as distorções sem motivação e ao bel prazer dos entes fiscalizadores, porém, de maneira isolada ou cumulativa, em detrimento da “peculiaridade” do caso concreto, entraria aqui a discricionariedade sobre a gravidade e a natureza das infrações, sem a exclusão da reparação do dano causado in concreto.
Agora, mesmo se tratando de percentuais sobre a atuação comercial da empresa sancionada/investigada, o legislador criou, como via alternativa, “caso não seja possível utilizar o critério do valor do faturamento bruto da pessoa jurídica”, a aplicação da multa em ululante paradoxo do piso ao teto de R$ 6.000,00 a R$ 60.000.000,00.
In casu, para a fixação da reprimenda administrativa seriam levados em consideração os seguintes critérios: a gravidade da infração; vantagem auferida ou pretendida pelo infrator; a consumação ou não da infração; grau de lesão ou de perigo de lesão; o efeito negativo produzido pela infração; a situação econômica do infrator; a cooperação da pessoa jurídica para apuração das infrações; a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade; auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e à aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica; também, valor dos contratos mantidos pela pessoa jurídica com o órgão ou entidade pública lesada.
Diante desta leitura, por vezes alternativa, outras abstratas, mostrar-se-ia relevante a existência de normas internas e medidas de compliance das pessoas jurídicas, sobretudo em prol de atenuar, não excluir a punibilidade, a multa, levando-se em consideração as normas internas de conduta e ética, além de uma fiscalização por meio de auditoria e incentivo de denúncias uterinas.
Nesse ponto nevrálgico, à época, as empresas ou pessoas jurídicas lato senso deveriam se rodear de mecanismos autofiscalizadores de sua rotina de trabalho, com isto, logicamente, aumentariam o seu custo operacional e, consequentemente, quem pagaria a conta por essa “adequação” será o consumidor final, mesmo diante de uma possível inflação (hoje real) e reajuste de preços (notadamente), devendo, como se faz de maneira reiterada, o Estado-Poder Público dividir essa fatia, com menor carga tributária, redução dos seus gastos, incentivos fiscais, sob pena de inviabilizar pequenas e médias empresas de, ainda, respirarem.
Além disto, outra singularidade na legislação em estudo está disposta na sua efetivação, pois, como se percebe no art. 8º, necessitaria de um processo administrativo de apuração e responsabilização da empresa fiscalizada, preservando os princípios da ampla defesa e do contraditório, cabendo à autoridade máxima de cada órgão ou entidade dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, em ato ex officio ou provocado, e assim sendo, na persecução do crime/ato antecedente, ou até se poderia discutir sobre o crime-meio punível, verifica-se uma questão: a norma, já que necessitaria de um exaurimento do processo administrativo, por analogia in bonam partem à súmula 24 do STF, poderia ser objeto de ação penal diretamente no Poder Judiciário? A resposta mais sensata seria não.
Pois bem. Estar-se-ia a vislumbrar a possibilidade da instauração de uma investigação sobre um crime de corrupção ativa, onde se insere na Lei em estudo, em seu rol, no inciso I, do art. 5º, sendo um delito de mera conduta, formal, com um possível indiciamento e propositura de ação penal, restaria validada, apesar de existir norma cogente (CPP, art. 387, IV) quanto à fixação de uma indenização de valor mínimo, uma condenação e aplicação de um quantum, mesmo sem o trânsito em julgado da esfera administrativa?
O questionamento é válido, apesar da jurisprudência asseverar a independência das instâncias administrativa e penal, bem como a Lei Anticorrupção não trazia tipicidade criminal, com a possibilidade de sancionar a pessoa jurídica e a física, em infortúnio bis in idem, se de fato estimar o prejuízo causado (art. 6º, I), isto seria legal? Pois a esfera administrativa, que serviria de supedâneo para a perseguição penal, poderia influenciar no desfecho da penal, desta feita, muito se teria a discutir sobre a validade conexa das sanções desse regramento.
Porém, ledo engano, pois os acordos de leniências divulgados nos meios televisivos, as distorções da publicidade opressiva, em punição antecipada, a ausência de interferência do Poder Judiciário, apenas a homologar os acordos firmados entre o Parquet e os delatores, ou empresas nominadas de corruptas, deram, e estão dando, nova leitura à lei em vigência, dão forma a atos administrativos (im)passíveis de nulidades e cogentes sem esperneio. Muito ainda há de se evoluir quanto à análise do tema em questão, mas, ainda, vigora o princípio da reserva legal, ainda constitucional até o que o Supremo Tribunal Federal diga o contrário.
Fonte: http://www.unacrim.com.br/aspectos-praticos-da-lei-anticorrupcao-na-seara-penal-breves-consideracoes/