Nova causa de impedimento da prescrição por não admissibilidade recursal

por João Vieira Neto e Adilson Agrícola Nunes

Como era de conhecimento, o art. 116 do Código Penal Brasileiro de 1948, com a redação dada pela lei 7.209, de 1º de Abril de 1984, em respeito à Constituição Federal de 1988, previa como causa impeditiva de contagem do prazo do curso da prescrição, antes de passar em julgado a sentença final,  apenas duas hipóteses, a saber: “I – enquanto não resolvida, em outro processo, questão de que dependa o reconhecimento da existência do crime”  e “II – enquanto o agente cumpre pena no estrangeiro.”

Em período natalino foi publicada a lei 13.964, de 24 de Dezembro de 2019, com vigência após 30(trinta) dias, dando nova redação ao pré-falado dispositivo, substituindo o termo “estrangeiro” por “exterior” e acrescentou mais dois incisos III e IV, como condicionantes a impedir contagem do lapso temporal prescricional – objeto deste artigo é o inciso III – , de péssima redação ao assim especificar:

“III – na pendência de embargos de declaração ou de recursos aos Tribunais Superiores, quando inadmissíveis; e IV- enquanto não cumprido ou não rescindido o acordo de não persecução penal”.

Lado outro, é de se atentar a matéria quanto à questão pré-processual do acordo de não persecução criminal, outrora instituído por Resolução do CNMP 181, agora dispositivo de Lei Ordinária (13.964), como regra inócua de impedimento da prescrição, em virtude do art. 110, §1º, do CP, cuidar de obstacularizar o reconhecimento desta causa de extinção da punibilidade dos fatos até a propositura da ação penal “…não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa.” Portanto, tal inovação deixará de ser causa de debruce reflexivo.

Retornando a tônica da proposição deste ensaio, no que se refere as hipóteses de exclusão de contagem do tempo de trâmite da interposição até o julgamento de “embargos de declaração ou de recursos aos Tribunais Superiores, quando inadmissíveis”, além de serem fruto da novel política criminal do encarceramento sem preocupação com a atual hiperpopulação dos presídios – 840 mil presos, terceiro maior do mundo, com apenas 429.039 vagas1 – , reduz o direito constitucional-fundamental do contraditório, ampla defesa e da presunção de inocência, porquanto se valha da ausência de sentença condenatória transitada em julgado, tema debatido à exaustão no Supremo Tribunal Federal.

É de se esclarecer, o inciso III do art. 116 do CP (à espera de vigência), porquanto afaste a contagem como prazo prescricional o tempo entre a data da sentença condenatória não transitada e o julgamento do recurso de Embargos de Declaração, seja no juízo de primeiro grau, seja nos Tribunais Estaduais e Regionais, seja nos Tribunais Superiores (leia-se incluído o STF) e nestes também os demais recursos inclusive Especial e Extraordinário, por decretação de inadmissibilidade destes, não daquele (aclaratório), frise-se, na origem, é sem dúvida, fruto da jurisprudência firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, a partir da Corte Especial no EDcl nos EDcl no ArRg nos EAREsp 32743/RS, sob relatoria do min. JORGE MUSSI. Nada demais!

Com efeito, visivelmente estampado este raciocínio em diversos vetustos julgados do STJ, seguindo entendimento do STF, decerto, interpretando lei inexistente até então, em privilégio da promessa de razoável duração do processo judicial in pejus aos preceitos fundamentais maiores, da liberdade, do devido processo legal com os recursos a ele correspondentes, da presunção de inocência e da coisa julgada, invariavelmente assim disserta: “A decisão que inadmite o recurso especial ou extraordinário possui natureza jurídica eminentemente declaratória, tendo em vista que apenas pronuncia algo que já ocorreu anteriormente — e não naquele momento — motivo pelo qual opera efeitos ex tunc. Assim, o trânsito em julgado retroagirá à data de escoamento do prazo para a interposição de recurso admissível.” (STJ – EAREsp 386.266, 3ª Seção, min. GURGEL DE FARIA, j. 12/8/2015, p. DJe 3/9/2015)

Os percalços passados pelo Poder Judiciário Brasileiro, com suas insuficiências materiais e estruturais, em (des)acompanhamento eficaz das demandas processuais, e que, portanto, a promessa de razoável duração do processo não se concretiza a cada dia, inobstante o acúmulo de processos a se avolumar, enquanto a sociedade aguarda ansiosa uma resposta, que muitas vezes é tardia, ao que parece, serve de lastro motivacional da reforma.

In casu, não possuir capacidade material necessária para entrega da prestação jurisdicional em tempo razoável face a solução das demandas, ao passo da mudança legislativa, transfere do Judiciário ao cidadão o reconhecimento da não-autoresponsabilidade de sua morosidade, ao se criar teoria do recurso inadmissível não previsto expressamente nos textos legais outrora, sem o descortino do direito à liberdade, redução dos recursos assegurados no ordenamento jurídico e viabilidade da implementação da ordem de habeas corpus de ofício, à luz do art. 654, §2º, do CPP ainda em vigor, oremos!

Enquanto isto, o cidadão à mercê das garantias, por cláusulas pétreas, fixadas na Constituição da República Federativa do Brasil, insusceptível de reforma senão por Poder Constituinte Originário, vê-se o malferimento à presunção de inocência de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;” e “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;” além da “…lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”, cair por terra arrasada pela via do Poder não legitimado para legislar.

Se nem o Legislativo derivado, o Executivo e nem o Judiciário poderiam legislar e alterar a Constituição Federal no pertinente a cláusula pétrea (Art. 60, §4º, inciso IV), agora, cria-se artifício de nítida insegurança jurídica por via transversa da norma constitucional, para resolver os interesses dos Poderes constituídos em prejuízo do direito do homem-médio consagrado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pois “Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei” (artigo VIII).

O art. 116, por inserção do inciso III, do Código Penal, com a redação dada pela lei 13.964/19, ao legitimar contrário ao art. 60, §4º, inciso IV da Constituição Federal, o trânsito em julgado retroativo do édito penal condenatório produz, a priori, a ineficácia de qualquer recurso, não só perante os Tribunais, mas também no juízo sentenciante, bastando tão somente taxá-lo de inadmissível, embora a norma processual os descreva especificamente como institutos processuais a serem requeridos contra decisão judicial contrária à pretensão da parte.

É o ponto nodal, da leitura da hodierna regra processual, prolatada a sentença, via de regra sem o cumprimento em duração razoável do processo, ter-se-á inevitável insegurança jurídica, pois, enquanto a Constituição Federal – reconhecidamente pelo STF – garante ao cidadão que ele só será declarado culpado após sentença penal condenatória transitado em julgado, se apresentado embargos de declaração, pela doutrina chamado de embarguinho (CPP, art. 382), perante o juízo de 1º grau, em tese, este poderá ao tempo de sua conveniência e oportunidade decidir, justamente, pela inadmissibilidade do aclaratório e, com isto, basta essa decretação para a sentença produzir efeito futuro coisa julga a partir da data de sua publicação em cartório, e os recursos legais seguintes não terão efeito a evitar a contagem deste transcurso temporal para fins de reconhecimento da prescrição, a despeito da coisa julgada ser definida pelo Código de Processo Civil de 2015, por seu art. 502, e o Código de Processo Penal preceituar, sem reserva, em seus art. 593 e 597 a disponibilidade do manejo de apelação, gize-se, com efeito suspensivo.

Assim estaremos diante de uma reforma, face à inserção dos incisos (III e IV) no art. 116 do CP, passível de análise dúbia e prejudicial ao recorrente/embargante, pois a simples indicação de sê-lo, o propósito recursal, inadmissível retroagirá à data da sentença e constituirá coisa julgada material, em evidente agressão ao inciso XL, do art. 5º, da Constituição Federal, com o propósito único de não ser contabilizado o tempo de tramitação dos recursos nos Tribunais (TJs e TRFs) e Superiores (STJ e STF) para fins de reconhecimento da prescrição.

Para além disto, a terminologia empregada no inciso III do dispositivo em questão é errônea, pois embargos de declaração sempre serão admitidos, se tempestivos, contra qualquer decisão judicial (CPP, arts. 382 e 619), mas poderão ser acolhidos ou rejeitados, ou até mesmo indeferidos (CPP, §2º, art. 619).

Dessa forma, pela via da conveniência jurisprudencial com beneplácito do Legislativo e Executivo, retira-se da lei em vigor, o direito suspensivo de forma transversa da apelação e, tolhe-se, decota-se a possibilidade de eficácia de recurso contra decisão penal condenatória, sujeitando-se o acusado ao cumprimento antecipado da pena, se já não mais houver a hipótese da prescrição ou eliminar o efeito suspensivo dos recursos.

Se o acusado vier a reformar a sentença em grau de recurso(s), ou até mesmo através de habeas corpus, a conferir-lhe a absolvição direta ou indireta, após anos de segregação da liberdade graças à morosidade do Judiciário, sobrar-lhe-ão apenas os constrangimentos, as humilhações, a convivência no sistema prisional degradante e a certeza que jamais recuperará a mancha à sua dignidade, em desapego ao processo de duração irrazoável.

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1 Dados fornecidos pelo CNJ, clique aqui.

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