João Vieira Neto
Por logicidade, todas as medidas deverão ser tomadas sem deixar de atender a prestação jurisdicional, com a observância dos direitos e das garantias individuais e o devido processo legal.
Como é consabido, pandemia diz respeito ao processo epidemiológico de uma doença transnacional, sem fronteiras a se demandar diversos povos e pelo mundo, sem qualquer exclusão, a exemplo do covid-19, também chamado de “novo coronavírus”.
Não por menos, o Brasil também está sendo assolado por esse vírus de proporções ainda inimagináveis e de rápido contágio e, para tanto, seguindo as orientações da Organização Mundial de Saúde – OMS, por cautela, determinou-se o isolamento social e diversas medidas de restrição a população.
Seguindo essa tônica, o Conselho Nacional de Justiça, dentre várias ações, recomendou através do ato 62/2020 uma série de proposições liberatórias e não restritivas aos juízos processantes e de execuções penais em razão dos intitulados grupos de risco, sobretudo e com o fim de serem adotadas iniciativas de prevenção à propagação da infecção do “novo coronavírus” nos estabelecimentos prisionais e socioeducativos.
A teleologia específica atende à proteção da vida e da saúde tanto das pessoas privadas de liberdade, como dos magistrados, servidores, agentes públicos que integram o sistema de justiça penal (leia-se: delegados, promotores, agentes penitenciários, entre outros), também àquelas que integram o grupo de risco, a saber, idosos, gestantes e pessoas com doenças crônicas, imunossupressoras, respiratórias e outras comorbidades preexistentes que possam conduzir a um agravamento do estado geral de saúde a partir do contágio, com especial atenção para diabetes, tuberculose, doenças renais, HIV e coinfecções.
Por logicidade, todas as medidas deverão ser tomadas sem deixar de atender a prestação jurisdicional, com a observância dos direitos e das garantias individuais e o devido processo legal.
Nesse jaez, os magistrados teriam o poder-dever de tomar providências preferencialmente socioeducativas em meio aberto, promover a reanálise das internações provisórias em relação aos adolescentes, com vias nas hipóteses dos artigos 2º e 3º da recomendação 62/2020 – CNJ, bem como nos processos de conhecimento e de execução penal (artigos 4º e 5º, R62/2020-CNJ) reavaliar as prisões provisórias à luz do art. 316, CPP – isto já era obrigação -, suspender a apresentação periódica aos libertos e agraciados pelo sursis processual, somente excepcionalmente determinar novas ordens de prisão cautelar, além da antecipação das saídas temporárias dos regimes fechado e semiaberto, alinhar o contingenciamento das saídas temporárias com a avaliação de eventual prorrogação, ou o reagendamento, conceder prisão domiciliar (inclusive) aos suspeitos ou confirmados com o covid-19, mediante relatório da equipe de saúde técnica, “…na ausência de isolamento adequado no estabelecimento prisional”.
Para além disto, os juízes de competência cível teriam, em tese, a obrigação da “colocação em prisão domiciliar” as pessoas encarceradas por dívida alimentícia, justamente “com vistas à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus”, esta é a regra contida no art. 6º da R62/2020-CNJ.
Outras recomendações de ordem administrativa e jurisdicional foram contempladas, nestas está a redesignação de audiências de processos onde o status é de “réu solto” – como se a ação penal já não aprisionasse –, a realização por videoconferência, restrição do público visitante nos fóruns, substituição temporária de agentes públicos nos grupos de risco, adoção de medidas preventivas de higiene, logicamente garantindo a salubridade, isolamento, “…quando necessário, na carceragem adjacente à sala de audiência”, e, deixando um hiato epistemológico quanto a não realização de audiências de custódia por motivação idônea, daí segue.
E na prática, o que mudou?! Infelizmente, quase nada.
De plano, é de observar a reação negativa da sociedade quanto às recomendações do CNJ, pois o (in)consciente popular imagina a soltura indiscriminada de todos os reclusos, em virtude da máxima punitivista estar visceralmente imbricada na mente da maioria.
Lado outro, as crenças limitantes, ideologias repressivas, carência de condicionantes sociais, desrespeito às regras vigentes, antagonismo e mitigação de direitos ainda faz parte do dia a dia dos agentes públicos do sistema de justiça penal.
Importante descartar, com brilhantismo, o Superior Tribunal de Justiça vem sendo protagonista de decisões elogiáveis, sensíveis aos anseios e indicações dos órgãos de saúde, a exemplo da ordem, em caráter liminar, proferida pelo min. Sebastião Reis Júnior, no HC 568.9631, onde determinou o afastamento da fiança como condicionante à liberdade dos presos, em razão da pandemia e da crise social. O deferimento da substituição da prisão preventiva por domiciliar, sem prejuízo da aplicação de outras medidas cautelares, com arrimo no art. 319 do CPP, subscrito pelo min. Reynaldo Soares da Fonseca, em sede de HC 5693412, face à recomendação 62 do CNJ, em razão do paciente se encontrar no grupo de risco apontado acima, comprovadamente.
Porém, a realidade do sistema lato sensu de justiça penal demonstra uma série de atos e decisões alheias ao contexto do “novo coronavírus“, recomendação da OMS e do CNJ.
A mitigação de direitos, desvio das garantias das pessoas presas, mentalidade encarceradora e poder discricionário punitivista ainda é regra, pois hodiernamente há de se deparar com notícias de negativa de seguimento de pedidos de habeas corpus coletivos, a despeito de ser ululante a falta de salubridade na absoluta maioria das unidades prisionais, mãe lactantes encarceradas, presos em leitos ambulatoriais sem a menor condição de permanência, sobretudo pela falta de medicamentos, médicos e técnicos de enfermagem, o Estado deve assumir as rédeas de sua (auto)responsabilidade.
É de se estarrecer uma autoridade policial fixar uma fiança no valor de R$ 1.500,00, quando o Superior Tribunal de Justiça afastou tal hipótese, sendo essa quantia impagável quando o autuado é morador de rua, em atuação da Defensoria Pública, tendo o juiz Rafael Resende, da Central de Audiência de Custódia de Benfica(RJ), concedido a liberdade provisória. Pior, certamente à frente ao dono da ação penal poderá afastar a culpa por aplicação do princípio da insignificância, pois o caso é de um furto de 1 (um) centímetro de fio, porque ainda reside no Direito Penal o seu caráter fragmentário e, roga-se, os agentes públicos deverão estar apegados ao princípio da economia processual.
Pior, juízes não (re)ativos as recomendações, premidos do trabalho presencial, servidores em teletrabalho, com autos físicos sem a disponibilização aos advogados ou defensores públicos em prol da solicitação da soltura daqueles em adequação e enquadramento aos grupos de risco da recomendação 62/2020-CNJ, em plena era digital, acaba por negar-se a própria prestação jurisdicional. Aqui, reside o não acesso à justiça penal mínima, como poderão os defensores constituírem prova em sede de habeas corpus? Fatalmente serão os pedidos indeferidos sem condições de processabilidade, ou quando muito as informações não são respondidas por indisponibilidade ao manuseio das cártulas processuais.
Há um gargalo gigantesco!
Senão fosse isto, as unidades prisionais estão obstando os advogados de acesso aos seus clientes, é o caso de Pernambuco3 como se descuidasse da constitucionalidade e essencialidade da advocacia à Justiça, inclusive aos enquadrados nos grupos de risco ou aos passíveis de substituição por medidas penais menos invasivas por imputação a crimes sem violência ou grave ameaça, a que ponto chegamos!
Estamos presenciando um estado de exceção do direito das coisas, a mentalidade dos operadores do direito deve estar conectada ao bem maior e pela saúde, deixando de lado ideologias repressivas e a maximização do encarceramento. É momento de união, aplicação do Direito Penal Mínimo tão esquecido, utilização da tecnologia para servir não a fim de deixar de resguardar garantias em crimes de médio potencial ofensivo.
Já em relação aos acusados por delitos de maior gravidade, hediondos, o Estado tem a obrigação de preservar a saúde, ofertar meios de isolamento nas unidades prisionais, estabelecer parâmetros de vigilância sanitária aos ingressarem no sistema carcerário, com a utilização do teste imediato para o covid-19 para resguardar o direito à vida deste e dos já encarcerados.
O tempo sombrio de isolamento, ansiedade à flor da pele, quebra de paradigmas sociais servirão para uma inflexão teleológica da aplicação do Direito Penal, em prol de se montar um anteparo à jurisprudência defensiva, criar mecanismos de agilidade na prestação jurisdicional e, porque não, melhorarmos quanto à concepção do (amor ao) próximo como ser humano.
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1 Presos em todo Brasil com liberdade condicionada a fiança devem ser soltos.