por Bianca Serrano e Maria Eduarda Siqueira Campos
A aplicação da teoria da coculpabilidade como atenuante inominada, diante das anomalias sociais, deverá ser reconhecida quando houver violação a direitos fundamentais e contribuição do Estado na prática delitiva.
Como consabido, atenuantes são circunstâncias legais e, portanto, obrigatórias, com viés a reduzir o impacto da punição do crime, sendo ponderadas na sentença, à luz das hipóteses dispostas no art. 65 do Código Penal, por seus incisos, a exemplo da idade, relevante valor moral, social confissão espontânea, dentre outras.
Lado outro, presta-se esse ensaio a ir além, em virtude do art. 66 do CP dispor também sobre a atenuação da reprimenda devido a alguma circunstância “… relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei”. Então, é importante consignar outras circunstâncias, em acréscimo as previstas no artigo anterior (CP, art. 65), pois o Código Penal prevê a possibilidade – legal – das atenuantes inominadas, ou de clemência.
De logo, trazemos à reflexão as lúcidas ponderações de Guilherme de Souza Nucci sobre a temática central, a saber:
“Trata-se de circunstância legal extremamente aberta, sem qualquer apego à forma, permitindo ao juiz imenso arbítrio para analisá-la e aplicá-la. Diz a lei constituir-se atenuante qualquer circunstância relevante, ocorrida antes ou depois do crime, mesmo que não esteja expressamente prevista em lei. Alguns a chamam de atenuante da clemência, pois o magistrado pode, especialmente o juiz leigo no Tribunal do Júri, levar em consideração a indulgência para acolhê-la. Um réu que tenha sido violentado na infância e pratique, quando adulto, um crime sexual (circunstância relevante anterior ao crime) ou um delinquente que se converta à prática constante da caridade (circunstância relevante depois de ter praticado o delito) podem servir de exemplos.”1
Para Euler Jansen:
“A doutrina e jurisprudência trazem várias outras hipóteses de atenuantes inominadas, dentre elas: ter o agente realizado espontaneamente tratamento de desintoxicação após a prisão em flagrante por porte de entorpecentes; tempo longo e injustificado para a tramitação processual; pagamento dos cheques que foram objeto do estelionato, após a denúncia; ser o agente portador de doença incurável; ter sofrido dano físico ou psíquico em decorrência do crime; ter confessado a autoria do crime, embora não de forma espontânea; ter o agente demonstrado desejo de recuperação, após a realização do crime; ter ele, tempos antes do crime, exposto a própria vida a perigo para salvar alguém de desastre ou incêndio, etc.”2
Fato é que, pouco, ou quase nada, se vê na prática a discussão jurisprudencial e hermenêutica sobre a aplicabilidade de tal espécie de atenuante, justamente em razão do rol expresso do art. 65 do CP, bem como a ausência de referência em sentenças em razão do disposto no art. 66 do CP, em mitigação à moderação equilibrada na dosagem da punição estatal, a despeito de ser uma ferramenta em prol de minorar as consequências danosas da reprovação ao juízo positivo de culpabilidade.
A previsão das atenuantes inominadas parte da impossibilidade do legislador prever todos os cenários a envolver complexa teia de hipóteses dos meandros do ato delituoso e das personagens envolvidas, tornando adequável o jargão “cada caso é um caso” e nos remetendo à satisfação ao princípio da individualização da pena.
Um dos maiores debates quando se trata de aplicação de atenuantes inominadas é a adoção da Teoria da Coculpabilidade, objeto fulcral da proposição desse texto, levando-se em consideração, em suma, não ter o Estado-sociedade garantido condições mínimas sociabilidade e oportunidades para o réu agir de maneira diversa, vejamos:
“Muito hoje se relaciona a atenuante inominada com a teoria da coculpabilidade, na qual a sociedade teria certa parcela contribuição para o delito, por ser desorganizada, discriminatória, excludente, marginalizadora e criadora de condições sociais que reduzem o âmbito de determinação e liberdade do agente. Seria uma espécie de “bondade” da sociedade por reconhecer sua influência em um delito. Em outra seara, o Juiz também utiliza bastante a atenuante para diminuir a pena do acusado em razão de circunstância que não é 100% adequada às atenuantes de aplicação obrigatória do Art. 65, mas que merece alguma consideração para a sentença.”3
Para o já citado autor Guilherme de Souza Nucci:
“Vale, ainda, mencionar a posição que defende a adoção da coculpabilidade, como fator de constituição da atenuante inominada prevista no art. 66. Na ótica de ZAFFARONI e PIERANGELI, cuida-se de um juízo de reprovação a ser feito tanto sobre o autor do ilícito penal quanto sobre o Estado, que não lhe teria assegurado as condições de igualdade e de oportunidade para o desenvolvimento de sua personalidade.”4
A divergência doutrinária e, principalmente, jurisprudencial reflete posicionamentos resistentes e conservadores, sendo sustentados na falta de previsão legal para a coculpabilidade, e na “justificativa” de que a criminalidade atinge todos os setores da sociedade, não podendo a falha ou ausência estatal legitimar a prática delituosa, ledo engano.
A questão, entendemos, vai além de um embate entre o réu e a sociedade, porque não se trata de realocar responsabilidades, desconsiderar ou minimizar a gravidade de um crime, mas sim, entender que as anomalias sociais influem diretamente no sistema criminal e, principalmente, nas vidas de previsíveis agentes que, por muitas vezes, se vêm sem opção ou sem, ao menos, (des)conhecer outro mundo senão o do crime, onde se deverá consideração o contexto das cercanias de vizinhança, antecedentes, estrutura familiar em que são inseridos e, sobretudo, a ausência de acesso às condições humanas básicas de educação, saúde e saneamento básico, em vias de protagonizar o preconceito, a marginalização social e, portanto, circunstâncias propícias ao delito.
É de se destacar, há (sim) indivíduos que embora vivam em condições de marginalidade social optam por seguir com retidão a sua vida em sociedade, entretanto, alguns não possuem esse senso de determinação e/ou sequer o conhecem. Essas exceções devem ser enxergadas exatamente como, sem tautologia, exceções, não excluindo o grande impacto da omissão estatal sobre a vida de pessoas em situação de vulnerabilidade social, evidentemente contribuindo para a disseminação de práticas delituosas e, assim, as distorções poderão ser reduzidas:
“…com base nessas atenuantes inominadas, há a possibilidade de diminuir a pena do réu, quando perceptível uma co-culpabilidade da sociedade, por não ter ela concedido oportunidades iguais para todos, em especial, no ambiente econômico e educacional. Os magistrados usam a hipótese do art. 14, I, da Lei nº 9.605/98, que se refere à atenuação por “baixo grau de instrução e escolaridade do réu”, como orientação para criar uma nova faceta para a atenuante inominada. Concordamos com esse entendimento, desde que cautelosamente apreciado dentro da subjetividade de cada caso.”5
Caberá, por consectário lógico, ao magistrado apreciar e ponderar as atenuantes inominadas no dispositivo dosimétrico sentencial, não excluir ou minimizar as consequências do fato delituoso, mas, por óbvio, retratar o crime praticado, suas peculiaridades e conjunturas circunstanciais, em prol da aplicação da sanção moderada e justa àqueles marginalizados socialmente e desamparados pelo Estado, a fim de contemplar o princípio da ressocialização.
Ao fim e, portanto, a advocacia-defensiva possui atuação primordial no reconhecimento de atenuantes inominadas, em especial, como a coculpabilidade, principalmente diante da grande demanda jurisdicional, onde nos deparamos com tantas decisões padronizadas, sem o verdadeiro debruce e olhar individualizado ao local do delito. O contexto fático-social, não só do crime, do acusado revela questões que devem ser ponderadas, visando garantir a real proteção aos direitos e garantias fundamentais do réu, além do efetivo e teleológico resultado perseguido pelo processo penal.
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1 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. 6. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro : Forense, 2014, p. 236.
2 JANSEN, Euler. Manual de Sentença Criminal. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 124.
3 SCHAUN, Guilherme. Você sabe o que é uma atenuante inominada (de clemência)?. 2019. Jusbrasil: Clique aqui. Acesso em: 4 de julho de 2020.
4 NUCCI, Guilherme de Souza, ob. cit., p. 236.
5 JANSEN, Euler. Manual de Sentença Criminal. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 122.
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*Bianca Serrano é sócia do escritório João Vieira Neto Advocacia Criminal. Pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade Damas.
*Maria Eduarda Siqueira Campos é advogada associada do escritório João Vieira Neto Advocacia Criminal. Pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade Damas.