Fonte: https://www.folhape.com.br/noticias/aborto-conflitos-aquecem-pauta/151926/
Caso de menina capixaba de dez anos submetida a procedimento no Recife reacende debate em torno do assunto
Carregado de estigmas, o aborto no Brasil é um assunto polêmico, seja na esfera jurídica, religiosa, médica ou social. Contudo, umas das certezas sobre o tema é que o procedimento praticado clandestinamente gera inúmeras consequências, tanto físicas como psicológicas entre as mulheres que decidem encerrar a gestação. No país, desde 1940, o acesso ao método é restrito e permitido por lei em casos de estupro e risco de morte para a mãe e o bebê. Além disso, graças a uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012, médicos responsáveis por aborto de fetos com anencefalia não podem ser punidos criminalmente.
Indo de encontro a nações desenvolvidas onde o aborto é descriminalizado sem restrições, como Estados Unidos e França, em terras tupiniquins a ofensiva contra o procedimento vai do Congresso Nacional às Câmaras de Vereadores. O aumento do número de políticos conservadores com viés ideológico de extrema direita reforça esse movimento. Para o presidente da Comissão de Direito Penal da Ordem dos Advogados de Pernambuco (OAB-PE), João Vieira Neto, o que se tem falado bastante é mais um discurso de ódio do que propriamente legal. “É um debate que deveria ser muito mais aprofundado”, avalia Neto.
Casada e mãe de um adolescente com 17 anos, Maria (nome fictício) se viu novamente grávida depois dos 40 anos. A notícia trouxe alegria ao lar. O marido começou a sair da depressão. A vida da família ganhou um novo sentido. Porém, no sétimo mês de gestação ela descobriu que o bebê tinha displasia esquelética letal e não conseguiria nascer com vida. Além disso, a gravidez passou a causar complicações na saúde dela e colocar sua vida em risco. Mesmo querendo ser mãe novamente, Maria decidiu pelo aborto, para não seguir por mais dois meses com uma gravidez que não teria o desfecho desejado. E mais que isso. Queria continuar viva.
Ao ser encaminhada para um hospital universitário, o Conselho de Ética da unidade de saúde acionou a Justiça para conseguir permissão para realizar o aborto. Equivocadamente, no documento falaram apenas da má formação do feto, mas não relataram o impacto na saúde da gestante. Alegando convicções religiosas, o juiz então determinou a continuidade da gravidez. O resultado foi trágico. Maria morreu no parto e o bebê nasceu morto. Casos como este, que ocorreu no Estado do Rio Grande do Norte, poderiam ser evitados se os direitos reprodutivos e a saúde das mulheres fossem amplamente debatidos no Brasil.
Diante de uma gravidez indesejada, a ilegalidade do aborto não coíbe sua prática, mas acentua as desigualdades sociais. Mulheres que não têm condições para realizar o procedimento em clínicas e consultórios privados recorrem a métodos clandestinos e buscam, muitas vezes tardiamente, assistência hospitalar pública para completar o esvaziamento do útero e tratar complicações. “Esse atraso para procurar o serviço de saúde pode resultar em um problema que a gente não consiga mais resolver. A gestante pode até se tornar infértil”, afirma o chefe da Unidade de Atenção à Saúde da Mulher do Hospital das Clínicas (HC) da UFPE, Elias Melo.
Até nos casos com respaldo legal, há uma verdadeira caça às bruxas, como aconteceu com a criança de dez anos, natural do Espírito Santo, que engravidou do tio após quatro anos de abusos. Mesmo com autorização do juiz, a equipe médica capixaba se recusou a fazer o procedimento, alegando incapacidade técnica. Argumento este bastante questionado e criticado por inúmeros profissionais de saúde. A menina acabou sendo transferida para o Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), na Zona Norte do Recife, sendo hostilizada e alvo de protestos de pessoas contrárias ao aborto.
Saúde Pública
No Brasil, ainda são poucos os dados sobre aborto devido à ilegalidade. Os que existem não são fidedignos à realidade, diante da subnotificação do procedimento, segundo especialistas. A última Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), realizada em 2016 pelo Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero (ANIS), aponta que uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez ao menos uma interrupção de gravidez na vida. A maioria recorreu ao método entre os 20 e 24 anos. O levantamento mostra ainda que há uma distribuição desigual do risco com a maior concentração entre mulheres jovens, pobres, nortistas e nordestinas, negras e indígenas.
A integrante da coordenação colegiada do Grupo Curumim, Paula Viana, defende que o aborto é uma questão de saúde pública e justiça social, que não deveria estar no Código Penal. “Tentam confundir e dizer que, se for legalizado, as gestantes vão fazer fila no SUS, mas já existe essa fila. Por ano, meio milhão de mulheres fazem o procedimento clandestinamente no Brasil. Destas, em torno de 220 mil terminam no SUS para tratar das consequências. Se formos ver quem passa por isso são as mulheres pobres. Quem é de classe média ou alta e tem uma rede familiar e social para ajudar faz o procedimento seguro em unidade privada”, alerta.
Paula Viana faz duras críticas ao modo como os dados sobre aborto são coletados pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DataSUS) do Ministério da Saúde. “Não existe seriedade para tratar o assunto sem estigma, preconceito e viés ideológico”, disse Paula, acrescentando que as informações referentes a internação das mulheres estão divididas em aborto espontâneo, por razões médicas e outras gravidezes que terminam em aborto. “Em 2019, foram 9.487 internações por essas três razões no SUS. Em 2020, até junho, esse número chegou a 4.261. Ou seja, em apenas um ano e meio foram 13.748 internações por aborto”, destaca.
Uma norma técnica do Ministério da Saúde, de 2012, coloca que qualquer unidade com serviço de obstetrícia deve atender mulheres em busca de aborto legal, mas na prática isso está longe de acontecer. Nas redes de saúde de Pernambuco e do Recife, oito unidades hospitalares oferecem o serviço. No caso de interrupção decorrente de abuso sexual, a vítima, a partir dos 10 anos de idade, conta com uma linha especializada de cuidados no Centro de Atenção à Mulher Vítima de Violência Sony Santos, que funciona no Hospital da Mulher, no Curado. No mesmo local, é possível fazer o registro policial e a perícia do legista.
Para Bárbara Pereira, integrante da Frente Pernambuco Pela Legalização do Aborto e do Fórum de Mulheres de Pernambuco, um dos empecilhos para o debate sobre o aborto no Brasil são os grupos fundamentalistas. Ela acredita ainda que existem conflitos de interesse que envolvem religião e parte da classe médica que lucra com o procedimento em unidades de saúde privada e não tem interesse que o serviço seja amplamente oferecido pelo SUS. Bárbara ressalta ainda que as mulheres estão mais engajadas nesta causa, organizando-se melhor na luta em busca do avanço e manutenção de direitos.
A ativista explica que a descriminalização do aborto é mais do que uma mera escolha sobre o próprio corpo e ajudaria a evitar a morte de mulheres. “Quando reivindicamos a legalização nunca imaginamos que deve vir sozinha. É necessária toda uma política. A mulher precisa ser devidamente informada, munida de todas as informações, de um atendimento humanizado, assistência psicológica, para que possa ter condições de decidir levar uma gestação adiante ou não. Não é uma mera escolha individual e desamparada. Antes é preciso existir uma série de direitos, como o acesso à educação sexual e a métodos anticoncepcionais”, fala.
Religião
De um lado há quem defenda que uma crença pessoal não pode ser imposta à população como um todo. Trata-se de uma parcela da população que reforça o fato de o país ser laico e não poder tomar medidas de interesse público com fundamentos em dogmas ou orientações religiosas. Do outro, conservadores ligados a igrejas caminham no sentido de fazer com que o Brasil endureça ainda mais a já tão restritiva lei. Um dos principais argumentos utilizados por essa camada de brasileiros é que a vida começa na concepção e, portanto, o aborto seria uma violação do artigo da Constituição que garante “o direito à vida”.
O coordenador nacional da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, pastor Ariovaldo Ramos, defende que é preciso ter um debate amplo sobre o tema, por não haver educação sexual à altura da necessidade da sociedade brasileira, principalmente na periferia. “É preciso lembrar que a possibilidade do aborto é uma defesa para a mulher e não pode ser descartado, não só quando ela é estuprada ou corre risco de vida. Precisa ser tratado de modo sério e profundo, para estabelecer inclusive os socorros sociais, psicológicos, e então a decisão da consciência. Não acho que o Estado deve legislar sobre a consciência de ninguém”, disse.
Para o pastor, que é membro da Comunidade Cristã Reformada de São Paulo, o Estado tem que promover aos cidadãos todas as condições para poder decidir conscientemente. “Quem é contra o aborto não analisa a vida a partir do ser humano e é muito complicado. Essas pessoas não entenderam que uma coisa é a gente decidir a partir da nossa fé para os nossos fieis. Outra é a gente impor a nossa visão da vida a toda uma nação. Não temos esse direito”, pondera, acrescentando que é preciso ampliar o debate dentro das igrejas.
Em vídeo publicado nas redes sociais, nesta semana, o arcebispo de Olinda e Recife, Dom Antônio Fernando Saburido, se posicionou contrário ao aborto e disse que a igreja defende a vida em qualquer circunstância. “Temos visto exemplos bonitos de profissionais da saúde que na pandemia estão salvando vidas e não podemos admitir que outros profissionais procedam colaborando com a prática da morte”, afirmou. Em nota, divulgada no começo da semana, Saburido disse que o “Recife está criando fama de ‘capital do aborto’ e precisamos ‘combater o bom combate’ para mudar essa triste fama”.
Neste domingo, em todas as igrejas dos Estados de Alagoas, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte será lida uma nota emitida esta semana pelos bispos do Conselho Episcopal Regional Nordeste 2 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). No documento, os fiéis católicos são convidados a fazerem uma reflexão “sobre a vida e os valores que a regem”. “Lamentamos que prevaleça atualmente, na sociedade, a tendência de se considerar o nascituro como simples resultado de um processo biológico ou sociocultural, favorecendo a popularidade de ideologias abortistas e a destruição do próprio ser humano”, argumentam.
Por meio de nota, a Assembleia de Deus em Pernambuco afirmou que sempre esteve alinhada ao mandamento bíblico “não matarás”. “A Igreja, como todo o mundo Cristão, com o arrimo bíblico, sempre se posicionou contrária ao aborto”, afirmou por meio da assessoria de imprensa. A reportagem entrou em contato com outras denominações evangélicas, mas até o fechamento desta matéria não obteve resposta.
Médico excomungado
No mesmo mês em que completa 34 anos de carreira como obstetra, o pernambucano Olímpio Moraes mais uma vez se viu em uma polêmica envolvendo o aborto. O médico conhece como poucos as nuances do debate sobre direitos reprodutivos e interrupção de gravidez no Brasil. Ele já foi excomungado duas vezes por representantes da Igreja Católica em Pernambuco. Uma delas por apoiar a disponibilização de pílulas do dia seguinte em postos de saúde durante o Carnaval do Recife. A outra por realizar o aborto em uma menina de nove anos que engravidou após ser estuprada, no Agreste do Estado.
Diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), primeiro serviço médico a realizar abortos legais no Norte-Nordeste, Olímpio Moraes afirma que é preciso tratar esse assunto à luz da ciência. “Não condenando e criminalizando as mulheres porque, quando se faz isso, elas não procuram ajuda, escondem a verdade, não chegam a um diagnóstico preciso, têm sequelas, morrem e a gente não consegue quebrar o ciclo de repetição de abortos. A gente só tem restrição ao direito reprodutivo e abortamento em países que não têm uma democracia forte ou em ditaduras”, explica.
O médico defende que, neste caso, a ciência deve ser a única norteadora do debate. “A ciência permite melhorar a nossa qualidade de vida e que a média da população ultrapasse 80 anos, permite a diminuição da mortalidade infantil graças a vacinas. Religião e ciência precisam caminhar juntas, não podem ser inimigas. O Estado laico tem que respeitar todas as religiões, mas a gente não pode tirar da visão religiosa as leis de Estado porque nem todo mundo comunga a mesma religião. Estamos vivendo um momento em que a apologia a mentira e ignorância está no poder para atrapalhar os direitos das mulheres”, disse.
No entanto, Olimpio se diz otimista e acredita na mudança de opinião das pessoas. Ele cita a si próprio como exemplo, que no começo da carreira era contra o aborto, mas foi mudando sua visão à medida que testemunhou o sofrimento das mulheres que precisaram passar pelo procedimento. “As mulheres não estão se sujeitando a morrer por capricho dos homens. Ainda há um machismo tremendo na nossa sociedade. A lei considera criminosa e pune somente a mulher. Não existe homem preso, nem morto por aborto. É uma coisa tão absurda. Cristo nunca foi favorável a apedrejar mulheres”, afirma.
Questionado sobre o argumento dos grupos contrários ao aborto de que a vida começa na concepção, ele afirma que o conceito de vida é muito mais amplo. “O que não pode é uma célula ser considerada um cidadão, querer trazer as leis de uma pessoa para uma célula. É incabível isso. A gente tem que respeitar os seres humanos, as pessoas que estão aqui, as meninas que são violentadas, a vida delas, a dignidade delas, a autonomia delas. Não é possível que as pessoas queiram destruir as vidas dessas meninas. É uma violência muito grande. Religião não é isso”, comenta o obstetra.
Entrevista com a gerente de Atenção à Saúde da Mulher da SES, Cleonúsia Vasconcelos.
De maneira geral, como é estruturada a rede estadual para dar assistência às mulheres que precisam fazer um aborto?
A rede estadual é organizada a partir da lei 16.444 sancionada no dia 31/10/2018 que dispõe sobre a prioridade de atendimento às mulheres vítimas de violência nos estabelecimentos de saúde, seguindo as orientações e normas técnicas do Ministério da Saúde para estes casos previstos em lei. O Estado de Pernambuco possui oito serviços que realizam a interrupção da gravidez nos casos previstos em lei, segundo o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). Nas unidades de referência, as mulheres vítimas de violência são acolhidas e passam por avaliação multidisciplinar, exames e preparo para realização do procedimento de acordo com os protocolos padronizados pelo SUS. Após o procedimento, a mulher continua recebendo o acompanhamento psicológico e ginecológico multidisciplinar até o completo restabelecimento, com garantia do sigilo.
Existe algo em comum nas mulheres que buscam o aborto legal?
As circunstâncias que envolvem a decisão das mulheres que buscam o aborto previsto em lei são distintas, porém todas têm em comum o desejo da interrupção por ser uma gravidez não desejada no contexto atual das suas vidas e a vontade de fazer o procedimento de forma segura e assistida.
Qual o perfil socioeconômico dessas mulheres que buscam o serviço de aborto legal? São mulheres com maior vulnerabilidade social?
Mulheres que buscam o serviço de aborto legal podem ser de diversas classes sociais, raça/cor, etnia e faixa etária, porém observa-se maior incidência e vulnerabilidade nas que apresentam nível socioeconômico mais baixo com maior mortalidade por aborto inseguro.
Pela sua experiência, qual a importância do aborto legal?
A existência de serviços para realização de procedimento de aborto legal impede que as mulheres busquem um aborto inseguro e que fiquem expostas a opções e locais com pessoas sem as habilidades técnicas necessárias, ou praticado em um ambiente que não cumpre com os mínimos requisitos médicos, estando a mesma sob risco de vida e de sequelas irreversíveis. O acesso ao aborto previsto em Lei tem papel fundamental na redução da mortalidade materna.