Por João Vieira Neto
Alvo de divergências doutrinárias e jurisprudenciais, o acesso do delatado aos termos de colaboração em que tenham sido citados é, evidentemente, uma das configurações mais sólidas do exercício do contraditório e da ampla defesa. Isso porque, inobstante o acordo de colaboração premiada tratar-se tão somente de um meio de obtenção de prova, pode vir a influenciar uma possível convicção judicial condenatória.
O princípio do contraditório, bem como da ampla defesa, consagrados constitucionalmente e amparados também pelo Pacto de São José da Costa Rica, comumente conhecido por Convenção Americana sobre Direitos Humanos, são de inegável imprescindibilidade a qualquer Estado Democrático, pois, servem de anteparo àqueles submetidos à atividade persecutória penal estatal.
Basicamente, o contraditório se manifesta como a noção bilateral dos atos, das informações, dos termos e trâmite processual e a oportunidade de confrontá-los, possibilitando aos indivíduos que participem e reajam ao processo. Já a ampla defesa, na seara do processo penal, é garantir ao acusado o acesso e a disponibilização de todos os meios e recursos cabíveis para que, plenamente, se defenda daquilo que lhe é imputado.
Nessa perspectiva, a Segunda Turma da Suprema Corte decidiu conceder ao ex-presidente Lula o acesso a todos os trechos do acordo de colaboração premiada firmado pelo ex-ministro Antonio Palocci, nos quais lhe seja imputado algum delito.
Preponderou o entendimento exarado pelo Ministro Gilmar Mendes, que suscitou a aplicação da Súmula Vinculante 14, bem como, o juízo da própria Turma que tem concedido aos delatados o acesso dos termos de colaboração e que não tenham diligências em curso para não restarem prejudicadas.
Em verdade, tal posicionamento vem se consolidando a partir de premissa normativa à luz do artigo 7º da Lei nº 12.850/2013, pois se confere ao defensor, no interesse do representado, a amplitude de acesso a todos os elementos de pré-prova, gize-se, mediante autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento, logicamente após a homologação do acordo de colaboração premiada.
Aliás, nesse ponto, o eminente ministro considerou que, inobstante julgar favoravelmente ao acesso às informações que incriminem terceiros e que nem toda diligência em andamento dificulta esse direito, caso o delatado requeira ao juiz responsável pela instrução criminal a obtenção de certo procedimento, e o magistrado entender fundamentada e justificadamente ter risco à persecução por atos do delatado, o sigilo deverá permanecer.
Todavia, deve-se levar em consideração que uma investigação por si só pode ser eivada de prováveis riscos e irregularidades, motivado ou não pelo delatado. O que não se pode admitir, via de regra, é a mitigação ou o aniquilamento das garantias dos delatados, que devem ter acesso aos elementos essenciais ao exercício da sua defesa.
Nesta toada, para além do escopo da episódica demonstração, ou reafirmação do direito subjetivo processual-penal de acesso em prol de alinhavar parâmetros regulares de ordem constitucional, também, é de se observar o amadurecimento da matéria legislativa com a vigência da Lei nº 13.964/2019, onde se estabeleceu diretrizes conjunturais e procedimentais ao negócio jurídico, como meio de obtenção de prova (não é conteúdo probante absoluta), pois será inservível tão somente com a palavra do colaborador, em rescaldo da necessária harmonia contextual de outros elementos de pré-convicção (artigo 3º-C, da Lei nº 12.850/2013).
Para tanto, o artigo 7º, §3º, da Lei nº 12.850/2013, estabeleceu que o sigilo das informações do procedimento de colaboração só deverá se resguardar sob tal manto até o recebimento da denúncia, criando marco temporal para se garantir ao investigado/delatado o acesso às informações em desfavor.
Lado outro, a Segunda Turma do STF, nos autos dos HCs 142.205 e 143.427, em julgamento sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, reconheceu a possibilidade-garantia do delatado perquirir a (falta) higidez das colaborações, suas negociações e a forma do procedimento, “em casos de manifesta ilegalidade no acordo, os atingidos por ele devem poder ir ao Judiciário, que deve agir para garantir os respeitos a direitos fundamentais e ao princípio da segurança jurídica”.
É de se observar outra perspectiva, sobretudo no cruzamento de colaborações em que há negligência de reporte ao conteúdo narrado, pois, como assinalam Renata Machado Saraiva e Luiza Farias Martins, “A omissão que dá causa à rescisão restringe-se aos fatos ilícitos para os quais o colaborador tenha concorrido na condição de autor ou partícipe, e desde que tenham relação direta com os fatos objeto de investigação já instaurada.”
Assinalaram André Luís Callegari e Raul Marques Linhares, em relação ao momento de terceiros-delatados impugnarem, como instrumento defensivo, o pacto premial, justamente, no “… procedimento criminal instaurado a partir da colaboração, quando os elementos colhidos no acordo passarão a influir nos seus direitos, considerando-se esse exercício do direito ao confronto um verdadeiro ‘filtro’ contra as ‘falsas colaborações’…”[1]
Acontece que, por (in)segurança jurídica de acordos firmados em relevo à legislação vigente (12.850/2013), passível de revisão por (re)estruturação da novel norma (13.964/2019), decerto, impõe-se o medo em negócios firmados e homologados, como descreve Zygmunt Bauman “Agora temos de aprender a viver com um permanente senso de incerteza”[2].
Em arremate, relembremos, a norma processual é aplicável de imediato, sem prejuízo da “validação” dos atos realizados anteriormente, mas, sim, deverão guardar contemporaneidade e correlação à Constituição Federal sob pena de figurar sua aplicabilidade letra morta ou episódica a cada julgador.
[1] CALLEGARI, André Luís, LINHARES, Raul Marques. Colaboração premiada, lições práticas e teóricas de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019, p. 155.
[2] BAUMAN, Zygmunt; DONSKIS, Leonidas. Cegueira moral, a perda da sensibilidade moderna líquida, tradução Carlos Alberto Medeiros, 1ª ed., Rio de Janeiro: Zahar, 2014, pag. 117.