Por João Vieira Neto
O delito contra a ordem tributária só se consubstancia após o exaurimento da esfera administrativa e o lançamento definitivo do tributo, à luz da Súmula 24 do Superior Tribunal Federal, por ser o artigo 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, com extensão aos crimes dispostos nos artigos 168-A e 337-A do Código Penal. A exceção reside no artigo 2º da Lei nº 8.137/90, em razão de não exigir para a sua consumação a produção de um resultado específico, pois é formal.
Contextualizada a tônica deste ensaio, sem viés essencialmente doutrinário, até porque a construção das teses de Direito deverá discorrer de cognição reflexiva, diz respeito à possibilidade da estanqueidade da materialidade dos crimes tributários a partir da suspensão do crédito por decisão judicial, como causa prejudicial à análise de mérito e da persecução penal.
Não por menos, há muito se revela a necessidade de conjugar normas em prol de criar mecanismos de investigação dos delitos fiscais, seja por quebra de sigilos bancários, fiscais ou outras medidas invasivas, aos olhos atentos do Poder Judiciário a fim de evitar excessos e devassas desprovidas de legalidade.
Contudo, deixou de ser incomum o manejo de ações anulatórias a afetar diretamente a higidez do crédito tributário sob diversas percepções quanto a questões preliminares, ou até mesmo invocando a falta de reserva legal no que tange à aplicação das sanções administrativas, em que o ente de fiscalização impõe multas, juros e penas alheias aos regramentos pautando-se em consultas internas, em completo desapego à Constituição Federal.
Para tanto, a relevância do assunto em debate tem o prisma de demonstrar a desnecessidade do avanço punitivo penal quando, ainda que precariamente, por intermédio de decisões cautelares, houver impugnação judicial do crédito tributário a contaminar a materialidade do crime fiscal, mercê da independência das esferas penal e administrativa.
Até porque “punir uma conduta materialmente atípica é admitir o uso do Direito Penal desvinculado da sua função legitimadora. Se não há lesão efetiva a um bem jurídico, o uso do Direito Penal não é mais que violência gratuita” [1].
Na prática, os magistrados fazendários se deparam com o ajuizamento de ações anulatórias de débitos fiscais pautadas estritamente na ilegalidade da confecção de autos de infração e, de logo, deferem liminares no sentido de suspender a exigibilidade da cobrança sob a premissa de proteger o contribuinte do excesso estatal de punição.
Nessa senda, quando uma decisão suspende a exigibilidade do crédito tributário por vergaste à gênese do ato administrativo, decerto, impede-se a sua cobrança judicial via execução fiscal ou qualquer ato de coação (inclua-se a persecução penal) ou cobrança direta ou indireta, nos termos do artigo 151, V, do Código Tributário Nacional (CTN), isso, inclusive, viabiliza a expedição de certidão negativa de dívida.
E como se resolve a querela penal no seu nascedouro por inquérito policial ou já instrumentalizada em ação penal quando sobrestado o executivo fiscal? Simples! A conduta tipificada depende de um resultado e, obviamente, em havendo alguma causa prejudicial de sua salubridade, sendo por deferimento de medida liminar ou decisão de mérito na esfera judicial–fazendária há de se aguardar o seu trânsito em julgado, pois colide frontalmente no pressuposto básico da ação penal, em virtude de decorrer de ato administrativo materialmente nulo/inexistente, face ao defenestrado lançamento do tributo, além da própria constituição do crédito, sob o comando dos artigos 93, caput, e 94, ambos do CPP, porque para o reconhecimento da existência do tipo penal dependerá da resolução da questão cível.
Em guinada jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça vem, especialmente quanto à temática em foco, revisitando vetusto entendimento para dissentir quando revelada a plausibilidade jurídica da tese, pois (agora) “a orientação desta Corte Superior disciplina que o simples ajuizamento de ação anulatória na esfera cível não configura óbice à persecução penal. Contudo, a procedência da ação anulatória, ou mesmo o deferimento de tutela provisória com suspensão da exigibilidade do crédito tributário, nos termos do artigo 151, V, do CTN, prejudica o exame da materialidade do delito tributário” (STJ – RHC 113.294/MG, 5ª T., ministro Reynaldo Soares da Fonseca, j. 13/8/2019, p. DJe 30/8/2019).
Na linha de intelecção ventilada, “… constatando-se dúvida razoável sobre a própria materialidade do delito, materializada com o deferimento da medida liminar na ação anulatória, é aconselhável aguardar a definição da controvérsia no juízo cível, determinando-se a suspensão do inquérito policial…” (STJ – AgRg no RHC 66007/CE, 5ª T., ministro Ribeiro Dantas, j. 28/4/2020, p. DJe 5/5/2020).
Primando-se no raciocínio lógico suso referido, em havendo o deferimento de tutela de urgência em ação anulatória de débito fiscal, com pauta a afetar diretamente o auto de infração, torna-se automática e razoável dúvida quanto à materialidade do delito tributário, sendo, por óbvio, recomendada a suspensão da investigação ou a paralisação da ação penal, até ulterior deliberação no juízo cível.
Em arremate, “a procedência da ação anulatória, mesmo que ainda pendente de recurso, repercute diretamente sobre a constituição definitiva do crédito tributário, enfraquecendo a materialidade delitiva. Destarte, é recomendável que o juízo criminal aguarde o trânsito em julgado da referida decisão, para dar continuidade ou não à Ação Penal” (STJ – RHC 113.294/MG, 5ª T., ministro Reynaldo Soares da Fonseca, j. 13/8/2019, p. DJe 30/8/2019).
Portanto, é cabível (sim) a suspensão do procedimento investigatório ou da ação penal até o deslinde da referida causa tributária, como preconizado no artigo 93 do Código de Processo Penal (CPP), pois, não havendo condições procedibilidade ou de processamento para a tramitação da persecução penal tal medida torna-se obrigatória, em razão do dever de cautela.
De forma cirúrgica, “em primeiro lugar, é importante retomar o ambiente jurídico no qual foram pensadas as causas supralegais de exclusão do crime (tipicidade, ilicitude e culpabilidade) e compreender qual o direcionamento dado pela doutrina e pela jurisprudência. Em segundo, é fundamental destacar o contexto político no qual a materialização das causas de exclusão do delito perverteu o direito por meio da fundamentação de incriminações supralegais” [2], ensina Salo Carvalho.
Sendo assim, em havendo vulneração da constituição do crédito tributário por decisão judicial, ainda que de maneira precária, a ponto de afetar a concretude da materialidade delitiva, não por menos, a única solução para garantir direitos à pessoa do acusado-contribuinte é a suspensão das vias de incriminação no aguardo da resolução de mérito da esfera cível.
[1] JORIO, Israel Domingos. Vulnerabilidade relativa, sim! In Boletim IBCCRIM: São Paulo, ano 20, n. 236, p. 08-09, jul., 2012.
[2] CARVALHO, Salo. A Materialização da Antijuridicidade na Dogmática Jurídico-Penal: Análise desde a teoria crítica do delito. In: Garantias Penais: Estudo alusivo aos 20 anos de docência do professor Alexandre Wunderlich / organizadores: Fabiane da Rosa Cavalcanti, Luciano Feldens e Alberto Ruttke. Porto Alegre: Boutique Jurídidca, 2019, p. 612.